quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Historinha pra dormir

Duas muriçocas saíram pela noite, à procura de um casal para azucrinar. Tinha que ser um casal, porque cada uma ficava zumbindo em uma orelha diferente. A muriçoca mais nova, ansiosa por desbravar novos lugares, chamou a amiga para uma aventura pela copa das árvores. O alimento,certamente, seria mais saboroso, "porque gente que gosta de árvore, tem o sangue mais doce", disse a impetuosa muriçosa adolescente, apaixonada por aquele 'molhinho vermelho agridoce', comum na culinária das muriçocas chinesas. A mais velha advertiu:

-"Vamos com muita calma, senão os ´maroins´das árvores nos pegam. Vá devagar,não se entregue às suas paixões deste jeito!". E assim foram.


Chegando perto de uma bela Castanhola, elas pararam e viram um casal, contemplando a árvore, da janela do quarto. A muriçoca mais velha alertou, do alto da sua experiência:


"Temos que esperar, eles ainda estão acordados e corremos riscos de um ataque súbito e certeiro com as mãos. Quando eles dormirem, nós nos aproximamos."


A mais jovem, claro, não se conteve e se aproximou. Tinha lido a "Arte da Guerra para Mulheres" e sabia que tinha de conhecer o inimigo. De cara, gostou da música que o casal escutava. Sabia distinguir música boa, apesar de não entender uma palavra sequer. Se aproximando mais, chegando bem perto, aí sim, ela entendia alguma coisa, graças àquele curso básico de "fala humana" que fizera. Assim, conseguiu ouvir a conversa daquele casal. O rapaz parecia ter uma boa retórica, falava como um cientista político, cheio de idéias revolucionárias e entusiasmado ao tocar algum instrumento, que, no entanto,a muriçoca não via. "Mas ele toca!", repetia a si mesma, incrédula.


Observou a moça, que olhava para todos os lugares e citava sempre alguma frase de um poeta para fundamentar suas impressões sobre as coisas.Parecia flutuar em um mundo imaginário. Se a muriçoca via um pé junto a outro, a moça declamava,para si mesma:


"Amar o perdido, deixa confudido este coração / Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do Não/ As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão/ Mas as coisas findas,muito mais que lindas, essas ficarão."


E a muriçoca não entendia nada! Casal Estranho. Mas, como todos os curiosos, ela gostava de novidade. E assim, ficou por ali, enquanto a mais velha havia desistido e voltado a sua conformidade habitual.



A muriçoca ninfeta pensou em ser antropóloga um dia, seguir uma carreira diferente daquelas tradicionais, mas a luta pela sobrevivência a fez migrar para o lado mais comum, indo atrás do sangue-nosso-de-cada-dia. Mas nem por isso deixou de estudar o comportamento das pessoas. E aqueles dois humanos eram intrigantes. A muriçoca, com sua visão aguçada, que lhe permitia ver as coisas com clareza mesmo diante da escuridão completa, percebeu que naquele lugar, havia um espelho diferente, que refletia a imagem real do espectador.


A muriçoca descobriu isso ao se observar naquele espelho. Ela não era apenas um inseto, tão igual a tantos outros. Ela se via maior, mais bonita, altiva, uma antropóloga reconhecida internacionalmente. Ela se via enfim, do tamanho que ela era de verdade, e não do tamanho que os outros a enxergavam. O espelho era mágico! Ficou tão maravilhada com aquilo, que já não podia mais sair dali. Tinha medo de voltar a se enxergar menor.


Então, grudada no espelho,observava que o casal passava por aquele arco sem notar sua verdadeira imagem, refletida ali, diante deles! A muriçoquinha ficou atônita! Eles pensavam que não havia espelho! Que aquele arco era apenas mais um trivial, parecido com um bambolê,comum a tantos outros! E a muriçoca não conseguia alertar sobre o que ela via!



O rapaz passava e ela conseguia enxergá-lo como verdadeiramente era, cheio de ternura e encantos, com asas enormes, destinadas a alçar longos e altos vôos. A moça despenteava os cabelos sem notar sua imagem ali, bem à sua frente, lhe mostrando sua real capacidade, seu potencial de águia,com asas e olhos que a faziam enxergar muito além do alcance.


A muriçoca cansou-se. Por mais que se esforçasse em gritar, espernear para que os humanos pudessem ver suas características divinas, eles não viam o que estava a sua frente. Tolos, acreditavam que eram apenas pessoas comuns, com problemas e dilemas ainda mais comuns. A jovem antropóloga desgruda do espelho e sai voando...Sabia que havia nascido para algo além, trazia consigo um sentido diferente das coisas. Chegou pensativa em casa e a sua amiga mais velha pergunta o que houve. Ela, mesmo resignada em não poder espalhar a notícia para o mundo, responde:



"Descobri que os seres humanos também têm asas, mas não voam! "

Um comentário:

Luana Magalle disse...

Vamos pensar na publicação desses seus contos!!! =)

Muito bom...