quinta-feira, 25 de março de 2010

"Passado é passado"?


Nem sei se eu devia escrever muito aqui no blog, já que tudo que a gente pensa se torna explícito demais, mas acho que o benefício que me traz é maior que prejuízos poucos. Pois bem, ontem estávamos conversando e Camila toca no assunto de ciúmes de ex´s. Diz que toda mulher não se aguenta de curiosidade de saber se a ex do atual é bonita, feia, burra, inteligente, piriguete, etc, etc. Eu e Luana não apenas concordamos, como ratificamos que quase todas as mulheres do mundo já se pegaram querendo saber do passado do seu amor presente, de preferência com detalhes, pra nos enforcamos depois, de ciúme.

Pode até parecer masoquismo, aliás, é definitivamente a escolha de um sofrimento totalmente desnecessário, mas para nós, mulheres, é essencial. Já Elias e César ficaram horrorizados com tamanha insegurança e inutilidade de querer saber do passado, já que eles, práticos como todos os homens são, preferem achar que nós estávamos presas num castelo assombrado e escuro, antes de eles aparecerem e nos apresentarem ao mundo. Talvez essa atitude seja, de fato, a mais sensata, perto da paranóia que nos acomete a cada vez que a ex de 1500 anos atrás aparece de alguma forma. Coitadas também daquelas que nos tem como ex´s, já que sofrem do mesmo mal.

Bom, pensando agora racionalmente, a gente sabe que cada história é única. Relacionamentos, sejam os passados, o presente, ou quem sabe, futuros, se constituem essencialmente em uma profusão de sentimentos entre duas pessoas, que jamais esquecerão do que viveram. Por isso, não adianta querermos apagar memórias, como no filme maravilhoso do Kauffman (Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças), em que a personagem da Kate Winslet tenta apagar o namorado que a fez sofrer (vivido por Jim Carrey) da mente, e percebe que apagar as suas lembranças acaba por apagar quem ela é.

Não há como querer esquecer de uma história, porque ela simplesmente é a NOSSA história. Como diz a Martha Medeiros, a gente é os discos que escutamos, os amigos que fazemos, as histórias que vivemos...e eu diria que também somos as pessoas que amamos. Todos os que passam em nossa vida deixam marcas. E elas nos moldam a ponto de construir nossa própria identidade.

Eu jamais seria quem eu sou hoje, se não tivesse passado por outras histórias. E cada uma me levou a um estágio de maturidade que ninguém consegue chegar sem "viver". Portanto, quem se apaixona por nós hoje, se apaixona por nós e por toda a população de sentimentos e lembranças que carregamos. No meu caso, se apaixona por uma pessoa bem diferente de 4 anos atrás. De 1 ano atrás. De 8 meses atrás. Todos os dias a gente percebe que não é a mesma pessoa. E por isso que cada relação é indelével e única. É um determinado momento, uma época diferente, pessoas diferentes, mentes, coração, corpo, alma, tudo é diferente. E por isso que cada momento importante que a gente vive na vida é simplesmente inesquecível.

Portanto, não dá pra "deletar" ninguém da nossa vida, muito menos pedir para que o outro esqueça o que viveu. Lutar por isso é brigar no vazio, como uma criança insana que quer bater no inimigo imaginário. Sabe aquela cena em que um pirralho quer bater em outro e um adulto simplesmente segura sua cabeça? E o guri fica dando socos no ar, impedido pela força maior? É assim que vejo quando queremos que o outro esqueça seu passado. Há uma força muito maior que nos impede de triscar nas lembranças, e essa força é a própria vida.

Se eu sei que quem se apaixonar por mim jamais poderá me pedir para esquecer o que já vivi, como poderei exigir isso de alguém? Confesso que, quando penso assim, fico envergonhada de um dia ter exigido detalhes de histórias passadas. Não há porque agir assim. Se passou, é sinal de que tudo era para ter acontecido exatamente como aconteceu, para que o momento presente pudesse existir. É como dizia o Clint Eastwood à Meryl Streep, em um dos meus filmes favoritos ("As pontes de Madison"), que se espantava como toda sua vida parecia estar resumida a um caminho inteiro apenas para chegar àquele exato momento.

É bonito isso. Saber que, se escutarmos nosso coração e seguir os passos que ele sussurra, certamente chegaremos ao lugar que desde sempre, é nosso. E sabermos lembrar com ternura do passado, mas sem olhar pra trás, já que assim corre-se o risco de tropeçar... no que está à nossa frente.

segunda-feira, 22 de março de 2010

"Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé, não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial;
o que brilha nos olhos é o que é: eu sou homem, você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho."

(Adélia Prado)

terça-feira, 9 de março de 2010

Medo da Eternidade

"Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.

Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.

Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:

- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.

- Não acaba nunca, e pronto.

- Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.

- Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.

- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.

- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.

- Perder a eternidade? Nunca.

O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.

- Acabou-se o docinho. E agora?

- Agora mastigue para sempre.

Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.

Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.

Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.

- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!

- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.

Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.

Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim."

LISPECTOR, Clarice. Medo da eternidade. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. p. 446-8.

E eis que o pirralho casou e sobrou mais um quarto em casa pra mim. E por contradição, nunca senti tanta falta da falta de espaço...