segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Leituras

O outro que há em nós

Quem some da nossa vida leva um pedaço da gente

IVAN MARTINS
Todo mundo tem ex, mas nem todos se relacionam com elas (ou eles) da mesma maneira. Boa parte dos homens ao meu redor, por exemplo, parece se dar excepcionalmente bem com as mulheres do passado deles. Falam com elas, jantam com elas, vão a festas com elas. Eu não. Há duas ex que são importantes com quem eu não troco palavra e outras tantas que eu permiti que sumissem. Para meu azar. Se cada uma das pessoas do passado conta um pedaço da nossa vida, há vários pedaços de mim que se perderam.
Quando se fica muito tempo com a mesma pessoa, sobretudo quando se é muito jovem, ocorre uma troca imensa e transformadora. Quem teve namoros longos na adolescência sabe como é. A gente cresce, aprende e se forma sob o olhar do outro, com a influência dele. Há o jeito de transar, o jeito de gostar, o jeito de pensar e conversar. Os valores. Somos esponjas e nos embebemos de quem está tão perto num período tão crucial.
Logo depois, na juventude, ocorre coisa semelhante. Você dá passos essenciais na vida – termina a faculdade, arruma o primeiro emprego, vai morar junto - em companhia de alguém que influencia e partilha as suas escolhas. Os amigos estão lá, claro. A família nunca deixa de ser importante. Mas é essa namorada (ou namorado) que divide intimamente os primeiros eventos da vida adulta, quando estamos aprendendo quem somos e o que queremos. A pessoa ao lado ajuda a moldar nossas definições.
Isso vale para os períodos posteriores da vida. Os nossos parceiros são parte essencial de tudo. Viajam conosco, riem conosco, trabalham conosco, cuidam de nós. Quem me deu aquele livro? Quem me apresentou aquela banda? Quem estava comigo na noite em que morreu aquele amigo? Ninguém pode dimensionar o valor das tardes de encantamento que as pessoas amadas nos deram. Ninguém sabe o quanto elas são importantes.
Uma das minhas teorias (descartáveis) sobre o amor é que apenas o tempo nos permite avaliar sua real importância. A pessoa passa pela nossa vida de um jeito rápido, quase acidental, e, anos depois, por força das memórias que insistem em voltar, a gente percebe que ela sobrevive em nós, apesar de ter estado tão pouco tempo conosco. Já aconteceu comigo. Sei que acontece com os outros. Isso significa que não apenas os longos relacionamentos que têm importância. Os outros também podem ser essenciais.
Vista de um jeito triste, a vida é uma longa enumeração de perdas, mas algumas delas são totalmente desnecessárias. É como se não soubéssemos como o tempo e os afetos são importantes e saíssemos por aí desperdiçando.
“Fulana, com quem eu vivi entre os 25 e os 30 anos, dane-se ela. Brigamos na hora de dividir as coisas na separação e nunca mais nos falamos.” Lá vai um bloco da sua vida que se tornou inacessível. “Sicrano é um crápula. Nós rompemos e logo depois ele saiu dando em cima das minhas amigas. Não sei como eu pude ficar tanto tempo com um babaca desses.” Eis outro pedaço da vida deletado. “Tenho saudades daquela garota, ela é tão legal, mas eu sumi sem falar nada, porque a Beltrana era ciumenta, e agora tenho vergonha de ligar. Já passou tanto tempo”. Péssimo, não?
Por isso, cuidado ao jogar pela janela relações valiosas. Cuidado ao descartar pessoas queridas. Não há tantas delas assim numa única vida. E cada uma delas leva consigo um pedaço da história da nossa história.
Isso não quer dizer que a gente não tenha de fazer rupturas e avançar. As coisas acabam para que outras coisas comecem. Tem gente que não termina nada, que tenta deixar todas as portas abertas, manter todas as linhas de telefone funcionando. Não dá. É preciso haver silêncio e afastamento. Há que permitir que as coisas terminem e que os sentimentos se reciclem. Então, sim, as pessoas podem voltar a se relacionar, de outro jeito.
Quando estamos apaixonados e levamos um pé na bunda, temos a tendência, muito humana, de querer ficar por perto, “como amigo”. Mentira. Todo mundo já fez isso, mas é bobagem. Dói muito e não adianta nada. Quanto termina, a gente tem de cair fora. A amizade virá depois, quando as sensações mútuas forem outras.
Há quem defenda a teoria de que relações de amizade entre gente que se amou são impossíveis. É outro jeito de dizer que relações erotizadas serão assim para sempre. Eu não acho. Os sentimentos, como a água, correm e vão parar em outro lugar. Eles tomam outra forma. A atração e o desejo não desaparecem inteiramente, mas se integram a outro contexto. Exacerbam o carinho por aquela pessoa que já foi tão próxima. Criam uma camada de compreensão que não existe em outras relações. Depois que o amor e a dor ficaram para trás, permanece um afeto contaminado pela antiga intimidade. Eu gosto desse sentimento, aprendi que ele é uma parte boa da vida, sei que é mais gostoso, infinitamente mais doce, que o vazio das relações que se extinguiram – que nós permitimos que se extinguissem.
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Ótimo texto

Quando a máscara vira rosto- Eliane Brum

Todo mundo inventa seus personagens, mas alguns acreditam demais no próprio e se estrepam


Ter um ou mais personagens para encarar a pedreira do mundo é não só necessário, como uma questão de sobrevivência. Especialmente se você tiver uma sensibilidade extremada. Nascemos com uma pelezinha de bebê também na alma (e aqui não me refiro ao sentido religioso do termo) e precisamos protegê-la. Se há algo que os outros pressentem é o tamanho da nossa fragilidade. Por isso um chefe abusivo sempre sabe com quem pode gritar – e com quem é melhor não. Muita gente é como aqueles cães de caça farejando o flanco mais indefeso para atacar sua presa. Triste, triste. Mas mais triste é quando, em nome da necessidade de sobreviver, criamos um personagem que se mostra tão útil que acaba se confundindo com nossa derme mais profunda. Se criar personagens é preciso, despir-se deles constantemente é vital. 
Como ando bastante por aí, tanto por razões profissionais quanto por gosto, observo muito as pessoas. E seus personagens. E, muitas vezes, tenho vontade de dizer, e em algumas delas, se há um grau de intimidade que me permita falar sem ofender, eu digo: “Pronto, você já fez o seu show. Agora, por favor, para jantar comigo enfia a máscara dentro da bolsa e relaxa”.
Ninguém se iluda de que é absolutamente verdadeiro o tempo todo, até porque somos muitas verdades ao mesmo tempo e seguidamente elas são contraditórias. Aquelas pessoas que parecem muito “autênticas” porque são extrovertidas, dizem coisas chocantes, se arriscam no estilo, estão muito bem cobertas por suas máscaras e morrem de medo de serem reveladas. A máscara do “autêntico”, “louco” ou “excêntrico” é uma das mais corriqueiras. Este tipo faz piada com o ponto fraco dos outros, dando gargalhadas e batendo nas costas da vítima e, quando alguém reclama, uma meia dúzia de amigos sai em sua defesa dizendo que “é o jeito dele”. Ahan.
Há o tipo “bonzinho” que, mesmo fazendo coisas horríveis e muito bem dissimuladas de vez em quando, é tão convincente no “foi sem querer” ou “ele jamais faria isso de propósito” que é imediatamente perdoado. Existe a “mulherzinha”, tão frágil que parece que vai quebrar a qualquer adjetivo mais eloquente. Esta manipula brilhantemente nossos mais primitivos instintos de proteção e, se você tem a coragem de dizer para ela tomar jeito e prescindir do diminutivo, imediatamente é você quem vira uma megera. E há o seu oposto, “a mulher alfa”, esculpida a navalhadas, que se arma de sapatos de bico fino, terninhos de grife e cortes de cabelo modernos, mas práticos, para arrasar meio mundo a bordo de sua armadura como se o melhor produto do feminismo fosse uma mulher se tornar um clichê de homem.
Enfim, são muitas as fantasias que vestimos para não sermos engolidos pelo mundo. Em geral não somos nem mesmo uma máscara definida, como as que acabei de expor apenas como recurso didático. Não somos Batman, Coringa, Gilda, Bambi ou Madre Tereza de Calcutá. Somos uma mistura de vários estereótipos. E, se é verdade que vestimos máscaras, também é verdade que não há um “eu” essencial – mas sim um “eu” fluido e incapturável, em constante movimento de mutação. E é nesta fluidez do eu, que não pode ser confundida com ausência de rosto, que residem nossas verdades mais profundas.
Acho que nossas máscaras começam a colar no nosso rosto ainda na infância. Uma mistura entre a necessidade de rotular que os pais em geral têm e o nosso desejo de satisfazê-los – ou de escapar da prisão que intuímos. Numa família com mais de um filho é mais fácil perceber. Um é o extrovertido, o outro é o tímido, outro ainda é o rebelde. Ou um é o estudioso que “não dá trabalho nenhum”, o outro é o vagabundo que ninguém sabe “por quem puxou”. E há o outro que tem – socorro! – “transtorno do déficit de atenção e hiperatividade”.
Os pais costumam botar um rótulo em cada filho, e a escola raramente tem competência para, em vez de reforçá-los, quebrá-los para que as crianças tenham outras possibilidades de expressar aquilo que são ou se tornar algo diferente do que foram levadas a ser. Uma pena, porque quebrar máscaras impingidas ainda na infância talvez seja a grande função de um educador. É muito difícil identificar se alguém “é assim” ou se tornou o que sempre ouviu que era. Agora, que as crianças são medicalizadas cada vez mais cedo e os rótulos ganharam status de “diagnóstico”, com a entrada do “especialista”, danou-se.
De fato, ninguém é – todos nós nos tornamos. E este “tornar-se” não é um caminho linear rumo a um rosto definitivo, que daria conta de nossa essência. Não há essência, o que existe é construção a partir de um conjunto de genes, de influências ambientais e experiências as mais variadas, de inscrição no momento histórico e de livre arbítrio – ainda que o livre arbítrio nunca seja tão livre assim. Embora possa ser assustador pensar que não há um “eu” essencial a ser alcançado, de fato é bastante libertador.
Somos uma constante invenção e reinvenção. E, tão importante quanto, desinvenção. Vale a pena não esquecer que sempre podemos nos desinventar. Ainda que carreguemos conosco tudo aquilo que vivemos, a mágica está em dar novos significados a antigas experiências e ter a sabedoria de nos livrarmos do que não é nosso, apenas foi impingido a nós como uma roupa de gosto duvidoso. Por isso, é bom tomarmos muito cuidado para não rotular os outros, como se nossas sentenças fossem imunes de preconceitos. E mais cuidado ainda se estes outros forem os nossos filhos, para que nossos rótulos não virem destino.
Acho que a melhor forma de não impingir máscaras aos outros é não impingi-las a nós mesmos. É bem fácil cair na tentação de transformar uma de nossas máscaras, aquela que nos parece mais eficaz no embate cotidiano, em nosso rosto definitivo. A máscara se torna tão usada que vai se fundindo primeiro à nossa pele, depois aos nossos ossos. Não é que vire ferro, como no clássico de Alexandre Dumas. O problema é que vira carne humana, mesmo. E aí, meu amigo, fica bem difícil de arrancá-la, porque passamos a acreditar que morreremos no processo. Ou que, por trás dela, não há um ou muitos rostos, mas um vazio infinito. Muita gente se agarra a seu personagem com medo de que, se a máscara for arrancada, descubram que não há nada lá. A máscara serviria, neste caso, para esconder a ausência de face.    
Tento me livrar da tentação de virar personagem, uma máscara só, pela própria escrita. Parte do ímpeto que me move a inventar outras vozes narrativas para mim e outras bases para estabelecer o cotidiano se dá pelo meu temor de acabar gostando demais de alguma máscara conveniente. Tento me quebrar o tempo todo me jogando em desafios novos sem pensar muito nos riscos para me desgarrar da tentação das certezas sobre mim. Tem funcionado.
Além das mudanças mais profundas, que quem me acompanha nesta coluna está cansado de saber, há pequenas trocas de atitude que podem ser bem divertidas. Eu sempre fui disciplinadíssima, por exemplo. Estou numa luta feroz comigo mesma para deixar de ser. No último final de semana consegui um feito inédito em 45 anos de vida: dormi 16 horas seguidas. Almocei e ainda me entreguei a mais duas horas de sesta. Vou acabar esta coluna e tomar uma cerveja em comemoração a isso.
Sempre fui pontualíssima e, como todas as pessoas pontuais deste país, esperava muito. A ponto de o garçom ficar com pena e vir conversar comigo. Agora, com exceção dos compromissos de trabalho, resolvi deixar todo mundo me esperando. É uma delícia a cara de surpresa dos amigos. Chego e está todo mundo lá. Costumava comer chocolates aos poucos. E, quando ia comer, antecipando o gosto do bombom desmanchando na minha boca, alguém lá de casa já tinha dado cabo dele. E ainda me acusava: “Você faz isso de propósito, para me tentar. Por sua causa, acabo engordando”. Pronto, além de ficar sem chocolate, ainda era culpada pelo descontrole alheio. Mudei. Agora devoro compulsivamente meus chocolates e também o dos outros.
Não, não parecem mudanças muito salutares, eu sei. Mas elas cumprem, pelo menos por algum tempo, a função de me desconstruir tanto aos meus olhos como aos olhos dos outros, que cultivam a pretensão de que a gente seja a mesma até o final dos tempos. Um peso que, com licença, não pretendo arrastar por aí como se fosse meu.
Especialmente nas questões mais profundas, desmascarar a si mesmo é uma prática importante do cotidiano. E também um ato que precisa ser constantemente recriado. Nosso instinto de sobrevivência engendra armadilhas e argumentos bem convincentes para absorver este “duvidar de si mesmo”, que nos mantêm alertas com relação a nossos próprios ardis, e acaba por torná-lo mais um penduricalho que tem apenas um efeito placebo. O que o mercado faz com a contestação ao mercado, transformando-a em um produto, nós fazemos com relação à nossa porção contestadora, ao transformá-la em nossa versão de mercado. De tal forma que, um dia, sem perceber, paramos de tirar a maquiagem no fim da noite e dormimos acreditando que a máscara é a nossa cara.
Dias atrás encontrei um conhecido muito talentoso. É brilhante mais vezes do que a maioria. Arrasta com ele uma legião de fãs. E, principalmente, tem o que dizer porque é um grande criador. Fazia algum tempo que não o encontrava pessoalmente e fiquei estarrecida ao perceber que ele tinha virado um personagem, um bufão. Não mais um bufão como forma de contestar a hipocrisia, mas um bufão como forma de não ser contestado em sua hipocrisia.
Torço para que ele perceba a tempo que a máscara é uma versão bem pobre dele mesmo, já que não tenho intimidade para dizer a ele eu mesma. Enquanto isso, ao testemunhar a figura triste em que ele se transformou, tratei de aprimorar meus próprios alarmes antimáscaras. E escrevi esta coluna na esperança de que ela possa ajudar a acionar a sirene em cada leitor. As máscaras têm sua função, desde que não nos apeguemos a elas a ponto de fazer da mais confortável um rosto que agrada a todos – menos a nós mesmos.