quarta-feira, 26 de junho de 2013

"Tu não morrerás"

Quarta-Feira talvez seja o dia das (e dos) donas(os)-de-casa no supermercado. É quando as coisas começam a faltar já no fim-de-semana, e o próximo domingo já se aproxima, fazendo com que uma grande parte dessas pessoas lotem os caixas. Digo isso porque costumo fazer o supermercado nesse dia e, mesmo que eu não pareça nenhum pouco com uma "dona-de-casa" tradicional (estou mais para uma personagem de Almodóvar, sempre " à beira de um ataque de nervos"), estou lá garimpando entre tomates e cenouras, boas histórias para ouvir. Ultimamente tenho ido com Levi, sempre rindo e conversando com todo mundo, e isso tem nos feito bem. Digo "nos" porque ele tem a oportunidade de ver outras pessoas e outros cenários, e eu adoro vê-lo descobrir o mundo...além de eu ter com quem conversar sobre o preço da carne, coisa inimaginável com meus amigos até bem pouco tempo atrás. Enfim, gosto de supermercado, de cozinhar, mas sobretudo, gosto de ouvir.

Hoje eu e Levi conhecemos a Dona Lourdes. Senhora de 82 anos que caminha e aperta bolinhas enquanto anda, porque a mão assim não entreva e ela tem artrite séria. Eu e Levi estávamos rindo um para o outro e ela apareceu para se juntar a nós. Disse que eu tinha ganho um grande presente da vida, e que eu iria agradecer muito por Deus ter confiado a missão de ser mãe. Concordei em tudo e com mais alguns minutos de conversa, Dona Lourdes me confidenciava da sua solidão com seus filhos já fora de casa, e alguns morando bem longe."Sinto muita falta do meu bisneto", disse com os olhos úmidos. Ficou com vergonha, deu um beijo no pé de Levi e sorriu pra mim. "Tchau, Bisa", imitei a voz de Levi e acenei.

Fiquei um tempo pensando naquela senhora que tinha a idade da minha avó, e senti uma saudade imensurável da minha. Liguei pra ela só pra escutar aquela voz antiga, que me acalenta só com um "alô". Falamos uns 3 minutos e eu já me sentia bem por ela ainda poder conversar comigo, quando tanta gente já não pode fazer isso. Perguntei quais os temperos ela usava para fazer guizado de carne, e lá estava ela me explicando tudo e se sentindo viva.

Então, Levi começou a se contorcer para "ir ao banheiro" e eu fiquei sem saber o que fazer direito, "como eu vou te trocar aqui no meio do povo, meu filho?", procurando um banheiro desesperadamente. Aí o Seu Antônio, um senhor que beirava uns 70 anos, percebeu minha conversa com meu bebê de 4 meses e sugeriu: "Eu fico tomando conta do seu carrinho enquanto você troca a fralda dele ali no restaurante. Tome esse saco para jogar a fralda suja..." Fiquei impressionada com a gentileza daquele senhor. Agradeci prontamente, fiz o que ele sugeriu e voltei logo, com Levi devidamente limpo. Não pude deixar de conversar com Seu Antônio e perguntar como ele sabia o que fazer sendo homem! "Ah, o que eu mais sinto falta nessa vida é de trocar fralda do meu filho de madrugada!". Começamos a rir e eu disse que ele tinha conquistado a vaga de babá de Levi terminantemente. "Tchau, Vô", Levi disse pela minha voz e sorriu largamente para seu Antônio, que retribuiu o sorriso, disse "Tchau, Levi, que nome lindo" e saiu contente.

Fiquei olhando para aquelas pessoas ali, catando verduras e alguém para conversar. Fiquei com dó do nosso tempo, em que a gente não se permite ouvir histórias, conversar com desconhecidos, confiar em ninguém. Tanta gente que só vai na feira para se sentir vivo, e não porque falta algum produto em casa. Vi muitos "Antônios" e "Lourdes" ali, perdidos em um passado onde filhos e netos existiam e estavam por perto, dando-lhes sentido para continuar a vida. Em meio a esta certa melancolia, me senti feliz com meu pequeno ali na frente e percebendo que aquele tempo estava sendo, efetivamente, bem vivido. A vida era aquilo. Nada mais e nada menos, só era aquele sorriso do meu guri que me fazia me sentir devidamente no meu lugar no mundo. Voltei feliz para casa, mesmo com Levi perdendo a paciência e dando espetáculo para voltar para a rotina dele. Tudo é bem cansativo e às vezes sinto como se eu nunca mais fosse ter vida própria, mas acho que é exatamente isso que eu aprendo dia após dia: vida própria é impróprio demais. Talvez a vida que valha a pena, seja aquela que vai além de nós mesmos. Não apenas pelas sementes que plantamos, pelos filhos que colocamos no mundo, pelo legado que deixamos. Vida que vale a pena é quando nos tornamos amor para alguém. Quando percebemos que nossa existência
nos faz eternos a partir do amor que compartilhamos, seja como pais ou filhos.

Quando vejo os avôs e bisavós que conheci hoje, percebo que é o amor pelos que estão longe ou perto que os mantém vivos, mesmo que seja pela saudade. É como o grande filósofo Gabriel Marcel escreveu uma vez  sobre amar alguém: "É dizer-lhes ' Tu não morrerás! Venha o que vier, tu e eu permaneceremos juntos". Tal conceito não significa que as pessoas que se amam nunca vão se separar, é claro. Mas é uma segurança que temos, que iremos sim, sobreviver eternamente no coração daqueles que nos amam, e permaneceremos vivos enquanto amarmos alguém. É bom pensar assim. E é claro que quando se fala de amor, eu lembro da Adélia Prado, que fala tudo poeticamente: 

 "O que a memória ama, fica eterno. Te amo com a memória, imperecível."