quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Seu Zé


      Estou reformando meu apartamento e confesso que, apesar das imensas dificuldades inerentes a uma reforma (ou a qualquer mudança), tenho adorado ir ver a obra e toda sua poeira, todos os dias. E não é apenas porque sou uma admiradora confessa das lentas transformações, mas estou gostando de ver tudo sendo derrubado por causa do Seu Zé. Seu Zé é pedreiro. Mas já foi de tudo, inclusive boêmio e jogador de sinuca. Tem 78 anos e seu tônus muscular causa inveja a mim, 50 anos mais nova. Seu Zé vive rindo, e às vezes eu me atrapalho e fico confusa com a felicidade simples desse homem, que parece resistir ao tempo e a qualquer dificuldade da vida. Quando eu chego no apartamento, ele logo diz -"A cumadre chegou. Vai mudar mais o quê, cumade?" e começa a rir, emendando a conclusão óbvia: "E haja a coçar o bolso!", já que qualquer mudança traz custos ( e quantos custos!). Ele solta mais um sorriso, amplo, largo e sincero.

          Seu Zé está me reformando junto com minha moradia. Ele me mostra belezas inimagináveis apenas com seu jeito simples de olhar para tudo à sua volta. Quando chego lá, geralmente ele está almoçando a marmita que sua mulher -há 50 anos-, prepara, às 5h da manhã. E sempre ela coloca uma mariola junto, para sobremesa. Para quem não sabe, 'mariola' é um quadradinho de doce de goiaba cristalizado. Lembra carinho. Lembra infância. Lembra pobreza. Pobreza bonita. Felicidade em pequena porção. 
Seu Zé trouxe cajus para ajudar na cicatrização da cirurgia de Elias. Cajus grandes, amarelos, vermelhos, polpudos e colhidos do pé. Não sei como agradecer a este homem. Sem nenhum grau de instrução, assinando um recibo em que só se consegue decifrar um "R" no seu nome que não tem "R", Seu Zé vai nos ensinando sobre a vida. 

         Já conheci muita gente na vida, pessoas felizes em sua tristeza e outras tristes em sua felicidade aparente. Também, e em maioria, conheço quem transita entre esses dois lados- dentre as quais me incluo-. Mas pessoas 'de bem com a vida', e não estou aqui falando de todo mundo que canta ' viver e não ter a vergonha de ser feliz' e depois chora de solidão, eu conheci poucas. Pouquíssimas. Essas raras pessoas que fizeram as pazes com sua trajetória, têm uma expressão singular. Elas parecem em paz consigo mesmas. Parecem desafiar nossas expectativas quando perguntamos o que elas querem. Elas querem apenas ser felizes.  Uma gama de gente pode se sentir incluída no rol dessas pessoas que só querem ser felizes, mas poucas conseguem provar o que dizem. Falam que só querem ser felizes, mas a ansiedade de querer outra coisa as consome. Vivem angustiadas, sobressaltadas, remoendo o passado ou sofrendo por aquilo que ainda está por vir. E não estou me excluindo da maioria não, pelo contrário. Somando-se a ela, eu consigo ver o que gostaria de ter: a paz de Seu Zé.

            A paz daqueles que abandonaram os pensamentos que nos fazem sofrer, nos preocupar antes da hora, aumentar os problemas, enxergar as dificuldades sempre com lente de aumento. A mente de Seu Zé o liberta. Enquanto nossos planos nos desorientam, Seu Zé prepara a argamassa e só se preocupa em executar um bom trabalho para aquele momento. Depois, descansa corpo e mente. Não me parece que Seu Zé se preocupe muito com que o amanhã trará. Seu espírito parece transcender a tudo que aflige à nós, meros mortais. Seu Zé, após o trabalho, toma um banho, volta pra casa para dar um "beijo na véa", sua esposa. 
E eu só posso admirá-lo e tentar conquistar o que ele tem de sobra: Fé. 
Em Deus, em si próprio, e principalmente, Fé na vida.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Eu nunca mais escrevi aqui. Não, não vou dizer que é por causa do tempo, do ar, da falta de tempo, da falta de ar. Sou adepta da frase "quem quer faz, quem não quer, arruma desculpa" há muito tempo. Eu ando sumida daqui apenas porque este tem sido um ano extremamente importante na minha vida, para não dizer um dos mais difíceis pelos quais já passei. Mas exatamente por ser difícil, tornou-se um marco, um ano em que cada mês traz consigo uma revelação absurda de verdades que eu até então desconhecia. É preciso tempo para maturar cada ensinamento.

Às vezes sinto como se eu estivesse dirigindo a pleno vapor para um destino conhecido, certo e seguro, e de repente, Deus tivesse tomado a direção abruptamente e estacionado a minha vida embaixo de uma árvore e em frente a um lago, e tivesse me deixado lá, sem a chave. Ele talvez tenha me dito: "Não foi assim que te ensinei a dirigir, minha filha. Você não está prestando atenção nos sinais, a velocidade está acima da média, os passageiros estão sem cintos, descuidados, e você deixou a sua habilitação longe daqui. Além de tudo, atalhos nem sempre funcionam. Fique aí até achar o caminho certo. Quando chegar ao seu destino, me avise que eu volto pra lhe buscar."

Eu, teimosa, mesmo assim, não aceitei que Ele me dissesse como dirigir, afinal, sempre fui uma boa motorista da minha vida, oras. Então, mesmo com um sermão do Condutor-Chefe, eu não fiquei quieta. Eu não refleti sobre nenhum dos erros. Eu só queria continuar meu caminho e chegar ao meu destino.

Então, pensando em como chegar e mostrar a Deus que sim, eu consigo chegar, eu fui atravessar o lago nadando, pois sempre fui uma exímia nadadora. Consegui chegar até o meio, mas a travessia começou a me parecer longa demais para meu fôlego. Nadei ainda mais depressa, na ânsia de que meu orgulho conseguisse me motivar o suficiente para chegar ao outro lado, mas meu corpo sucumbiu. Havia uma correnteza, e ela levou meu corpo cansado exatamente ao local onde eu havia começado: a beira do lago.

Me recompus e torci para que Deus não tivesse visto meu vexame. Me enxuguei e não desisti. A triatleta aqui achou que era a hora da corrida. Comecei a correr pela pista, na esperança de que o destino almejado estava logo ali perto. Mas, mais uma vez, meu corpo não aceitava os comandos da minha mente. Era mais forte que ela. Parecia um problema de mecânica no meu "carro", não de combustível. Eu queria, mas o meu pé doía. Meu joelho. Minhas pernas. Todas as minhas articulações. Então eu voltei para o mesmo lugar.

Fiquei ali parada, embaixo daquela árvore, sem saber bem o que fazer. Sem saber o que pensar.

Fiquei descalça e me permiti descansar, deitada embaixo daquela imensa árvore.

E comecei a planejar minha próxima estratégia. Mas quando comecei a planejar, fui vendo na minha mente o que aconteceria se cada empreitada desse certo. Para onde realmente eu queria ir? O que eu exatamente gostaria de ter? O que me faltava de tão urgente na vida que me fazia acelerar tanto? O que me fazia feliz de verdade? Algum dia eu iria dedicar tempo para fazer só isso: ser feliz ? Por que eu não conseguia resistir à tentação de sempre querer mais?

Eu gostaria de mudar o enredo dessa estória e continuá-la aqui no Blog dizendo que eu encontrei as respostas, quais foram elas e discorrer sobre essas dúvidas como quem sabe exatamente o quê, e como fazer. Mas eu ainda estou embaixo da árvore, me permitindo respirar e pensar em tudo isso, e no porquê de eu ter vindo parar aqui. Estou de repouso absoluto por recomendação médica. Tenho um aval para ficar quieta. E enquanto isso, eu vou refletindo e tentando achar o caminho que Deus quer tanto que eu encontre. Espero que Ele não venha me buscar antes da hora... ;)

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

ESCUTATÓRIA

Rubem Alves



Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar, ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma".

Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia. Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma".

Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios: reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, [...]. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas.).

Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio.Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou.

Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades. Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado". Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou". Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada.

O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou". E assim vai a reunião. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.

Eu comecei a ouvir.

Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras.

A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar.

Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.

Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.
“Lá está ela, mais uma vez. Não sei, não vou saber, não dá pra entender como ela não se cansa disso. Sabe que tudo acontece como um jogo, se é de azar ou de sorte, não dá pra prever. Ou melhor, até se pode prever, mas ela dispensa.
Acredito que essa moça, no fundo gosta dessas coisas. De se apaixonar, de se jogar num rio onde ela não sabe se consegue nadar. Ela não desiste e leva bóias. E se ela se afogar, se recupera.
Estranho e que ela já apanhou demais da vida. Essa moça tem relacionamentos estranhos, acho que ela está condicionada a ser uma pessoa substituta. E quem não é?
A gente sempre acha que é especial na vida de alguém, mas o que te garante que você não está somente servindo pra tapar buracos, servindo de curativo pras feridas antigas?
A moça…ela muito amou, ama, amará, e muito se machuca também. Porque amar também é isso, não? Dar o seu melhor pra curar outra pessoa de todos os golpes, até que ela fique bem e te deixe pra trás, fraco e sangrando. Daí você espera por alguém que venha te curar.
Às vezes esse alguém aparece, outras vezes, não. E pra ela? Por quem ela espera?
E assim, aos poucos, ela se esquece dos socos, pontapés, golpes baixos que a vida lhe deu, lhe dará. 
A moça – que não era Capitu, mas também têm olhos de ressaca – levanta e segue em frente. 
Não por ser forte, e sim pelo contrário… Por saber que é fraca o bastante para não conseguir ter ódio no seu coração, na sua alma, na sua essência. E ama, sabendo que vai chorar muitas vezes ainda. Afinal, foi chorando que ela, você e todos os outros, vieram ao mundo.”


(Caio F.Abreu)