terça-feira, 24 de abril de 2012

Concurso para "Normose"

Hoje lá ia eu, para mais um dia de férias (?) e de estudo na Biblioteca (eu já disse que eu amo bibliotecas?), e encontrei um conhecido no caminho para as mesas de estudo. Estranhei porque me lembro bem que o pai desse rapaz tinha algumas lojas de roupas, e ele tinha se formado em Administração justamente para ser um empreendedor. Não me contive e perguntei: "-Fulano, por que vc tá aqui? Tá fazendo MBA é?". Ele, com um sorriso amarelo, mas animado, me disse: "-Não, meu comércio não deu certo. Estou estudando pra concurso, vou fazer esse da Polícia Federal."

Assim como ele, quase todos que ali estavam (e eram muitos) iam fazer o mesmo concurso. Fiquei triste, instantaneamente. Me lembro bem que esse menino era competente e dedicado. Que tinha tino para os negócios, que sempre tinha sido um comerciante nato. Fiquei abismada de um cara tão novo, cheio de vida e de oportunidades ainda pela frente, tenha se "aposentado" da vocação para "estudar para concurso".

Antes que caiamos em uma conclusão simplória, conto outra história, ainda do dia de hoje.

Minha irmã encontrou um ex-colega de faculdade na mesma Biblioteca e me disse: "-Esse menino era o mais preparado da Faculdade, super inteligente. Sabe falar uns cinco idiomas, fez PIANI (programa de intercâmbio universitário) na França, mestrado e passou uns oito anos fora. Não conseguiu emprego e tá estudando pra concurso".

É muito triste viver em um País (e principalmente, em um Estado) que permite que gente tão bem preparada não tenha oportunidades de desenvolver seus talentos sem que o fantasma do desemprego, da falta de grana para nossas necessidades mais básicas (e entenda-se aqui como necessidade o que precisamos "comprar" no Brasil: saúde, segurança, transporte, educação), assombre nosso futuro. Não julgo essas pessoas que, mesmo com os mais variados talentos, buscam um pouco de segurança e estabilidade em um país em que nunca sabemos o que vem pela frente.

Mas, sendo sincera, vejo que podemos buscar isso sem deixar de lado nossas aptidões. Confesso que eu também estava estudando pra Delegado da Polícia Federal. Como sabemos, os sonhos "coletivos" são tentadores e embarquei na ideia como se esse cargo fosse uma grande chance. Mas a vida, sempre ela, está aí para nos ensinar sempre, e percebi, através de uma situação pessoal, que eu não tenho a mínima vocação para ser policial, para lidar com o crime nem com todo o arcabouço de sentimentos que cercam o Direito Penal. Em um ato de respeito a mim mesma, chutei o balde dos sonhos dos outros, e fui buscar outro caminho. Gostaria de ter pensado nisso antes, e talvez seja por isso que agora escrevo. Para quem sabe, alertar alguém de que dentro de nós existem determinadas características que jamais nos deixarão em paz se não as respeitamos. Se alguém odeia calor, gente, e tênis, por favor, não faça concurso para oficial de justiça (hehehe). Ouça seu coração. Vá atrás do que desde sempre, já é seu. Não tente tomar emprestado sonhos que não são seus, concursos só pelo salário no fim do mês. O sentido da vida deve ser bem maior do que conseguir pagar parcelas de uma cozinha projetada.

Eu não julgo quem busca um salário de "dois dígitos" ou mais. E também não me excluo dessa imensa parcela da população que procura estabilidade primeiro para depois seguir a vocação. O grande problema é que às vezes nós queremos muito mais a busca do que propriamente o objetivo. Vejo milhares de colegas de trabalho frustrados, com ódio de estarem intimando pessoas sob um sol quente. Apesar de estar estudando pra outro concurso, nunca deixei de valorizar meu trabalho e saber o quanto um oficial de justiça pode ter seu valor para uma pessoa sem o mínimo acesso à justiça. Tenho orgulho do meu trabalho, por mais preconceito que possa cercá-lo. Lembro até de um colega de Brasília que me perguntou, abismado: "-Mas você vai deixar de ser uma "especialista em projetos educacionais" para ser "oficial de justiça"???". Eu que nunca liguei para rótulos e sim para a essência, pouco me importei com o título da minha nova profissão. Vaidade não é comigo. Procuro pensar sempre que, se Deus nos coloca em um lugar, é para que possamos aprender e ensinar, por mais batida que essa ideia possa parecer.

Mas, para não desvirtuar muito do assunto do post, gostaria apenas de lembrar-lhes de que a vida, enquanto não nos provem o contrário, é só uma. Não perca seu tempo fazendo dela um jogo bobo para quem chegará na frustração mais cedo. Lembro de que, quando morava em Brasília, li uma reportagem sobre o número de deprimidos no serviço público, que tiveram uma rica formação cultural e de repente, estavam exercendo seu intelecto apenas para carimbar processos. Estavam reféns de suas próprias escolhas. Não queiramos isto para nós. Vamos buscar o que nos preenche, sem esquecer do mundo real e das nossas contas a pagar. Nem que demore mil anos, estude ou vá em busca daquilo que você quer ser, e não para aquilo que o mundo lhe ordena que você seja.



ps:Eu sei que o texto foi beeeem longo, mas se você estiver com paciência para ler mais, aí vai um ótimo texto da minha querida escritora Martha Medeiros:

"Lendo uma entrevista do professor Hermógenes, 86 anos, considerado o fundador da ioga no Brasil, ouvi uma palavra inventada por ele que me pareceu muito procedente: ele disse que o ser humano está sofrendo de normose, a doença de ser normal. Todo mundo quer se encaixar num padrão. Só que o padrão propagado não é exatamente fácil de alcançar. O sujeito "normal" é magro, alegre, belo, sociável, e bem-sucedido. Quem não se "normaliza" acaba adoecendo. A angústia de não ser o que os outros esperam de nós gera bulimias, depressões, síndromes do pânico e outras manifestações de não enquadramento. A pergunta a ser feita é: Quem espera o que de nós? Quem são esses ditadores de comportamento a quem estamos outorgando tanto poder sobre nossas vidas?


Eles não existem. Nenhum João, Zé ou Maria bate à sua porta exigindo que você seja assim ou assado. Quem nos exige é uma coletividade abstrata que ganha "presença" através de modelos de comportamento amplamente divulgados. Só que não existe lei que obrigue você a ser do mesmo jeito que todos, seja lá quem for todos. Melhor se preocupar em ser você mesmo.


A normose não é brincadeira. Ela estimula a inveja, a auto-depreciação e a ânsia de querer o que não se precisa. Você precisa de quantos pares de sapato? Comparecer em quantas festas por mês? Pesar quantos quilos até o verão chegar?


Não é necessário fazer curso de nada para aprender a se desapegar de exigências fictícias. Um pouco de auto-estima basta. Pense nas pessoas que você mais admira: não são as que seguem todas as regras bovinamente, e sim aquelas que desenvolveram personalidade própria e arcaram com os riscos de viver uma vida a seu modo. Criaram o seu "normal" e jogaram fora a fórmula, não patentearam, não passaram adiante. O normal de cada um tem que ser original.


Não adianta querer tomar para si as ilusões e desejos dos outros. É fraude. E uma vida fraudulenta faz sofrer demais.


Eu não sou filiada, seguidora, fiel, ou discípula de nenhuma religião ou crença, mas simpatizo cada vez mais com quem nos ajuda a remover obstáculos mentais e emocionais, e a viver de forma mais íntegra, simples e sincera.


Por isso divulgo o alerta: a normose está doutrinando erradamente muitos homens e mulheres que poderiam, se quisessem, ser bem mais autênticos e felizes."
Martha Medeiros

6 comentários:

Polly Barros disse...

Ótimo texto! Uma reflexão que já me peguei fazendo, até porque fujo da normose como quem foge de um cão feroz! rs
Fiz um concurso qdo era mais nova, fui ser bancária por pura pressão familiar e social, mas a minha alma pulsa por outras coisas, pelas artes, pela poesia da vida. Acredito demais que podemos mais, muito mais, infinitamente mais. E por isso, era sufocante aceitar que o meu caminho era o concurso, banco... Larguei, e hoje, pra encurtar a história, tenho perseguido o meu próprio caminho, sem regras estabelecidas, apenas me doando ao que sou.
Sempre fiquei reticente com essa moda recente dos concursos, exatamente isso q vc escreveu, as pessoas abrindo mão de suas aptidões pra seguirem "bovinamente", como diz no extrato de texto que colocou, as regras sociais. Acho furada, acho que perdemos todos nós, de termos bons médicos, engenheiros, comerciantes, antropólogos, artistas, etc, etc... Ouvir o coração é importante, e repensar os "valores", em todos os sentidos.

Carol montenegro disse...

Muito legal,Vivis. É isso ai, estabilidade mas sem esquecer das aptidões! Gostei!Beijos

Lucas Peixoto disse...

Feliz, demais! Parece que uns poucos anos atrás quando nos formávamos e eu já sabia claramente o que NÃO queira, comecei a dar estes passos, para longe da normose. Faz já um certo tempo que me estabeleci como um "anormal" e estou feliz assim. Abandonei o "promissor" caminho do Direito e dos concursos, para seguir o "preocupante" caminho do magistério. Resultado: estou feliz, galgando meus degraus aos poucos. Me vejo as vezes mais bem direcionado do que muitos de meus amigos e colegas, muito embora muitos destes passem por mim e sussurrem sobre minha louca falta de ambição! Eles não sabem que a minha ambição era e é maior que a deles... Quero ser "eu".

Nu Canto disse...

Parabéns !...Louvo a DEUS por você existir e fazer de ti esta pessoa inteligente e carismática que vc é filha .Saudades de sua mãe que te ama muiiiito!.Bjs

Franco disse...

Olá, Vivianne!

Já faz um bom tempo que os concursos tem sido o grande objeto de desejo de milhares de brasileiros aptos ao mercado de trabalho.Geralmente, a grande maioria pensa mesmo é no salário oferecido... Gente que não tem a menor vocação para tal função, mas é inteligente, passa no concurso e depois vai prestar um mau serviço e se prestar um mau serviço.

Eu, como exemplo, comecei duas faculdades: Economia ( que gosto bastante) e Ciência Contábeis ( que não gosto), fora a faculdade de música. Abandonei a faculdade de Economia porque percebi que financeiramente ganharia mais dinheiro como contador ( e estava difícil cursar as duas ao mesmo tempo) ou pelo menos me estabeleceria mais rápido no mercado, já que somos imprescindíveis para o universo empresarial... E a faculdade de música ( essa minha grande paixão) eu também deixei, porque sofri pressão da família dizendo que eu passaria fome como músico no meu Estado e no meu país... Prestes a me formar ( 1998) já pensávamos em concurso público e quase ingresso na Marinha. Mas eu teria que ficar 02 anos enfiado em um quartel do RJ... O salário era bom, status, regalias, vantagens e etc. Mas acabei desistindo por causa da minha mãe ( já era idosa, eu filho único, não teria tempo de cuidar dela) e na época me chamaram de louco porque abri mão da vaga que havia conquistado.Mas uma vez, havia pensado na grana, em ter um futuro bom, garantido,ao me inscrever para o concurso; mas minha mãe me salvou... Ainda assim, formado em algo que não gostava, restou concluir: sou um profissional infeliz. Não gosto do que faço, embora procure fazer da melhor forma possível levando em consideração que quem me paga não tem culpa das minhas escolhas.

Pensei no dinheiro e esqueci de mim... E o dinheiro que se ganha, não paga a saúde que se perde...Fora que meu trabalho me consome tanto tempo, que não tenho tido o mesmo tempo para cuidar da minha saúde. Certamente quem não tem tempo para cuidar da saúde, haverá de ter , obrigatoriamente, tempo para cuidar da doença... Por isso , também planejo mudar de rota.Enfim...

Não sei quanto faz, mas você havia comentado no seu blog que faria concurso para delegado da Polícia Federal e eu estranhei, porque, embora não a conheça pessoalmente, pelo tempo que já acompanho as inúmeras reflexões que nos proporciona, tinha convicção que um cargo como esse não te faria feliz, muito menos combinaria contigo. Que bom que mudou de ideia.

No mais, toda essa corrida louca que este mundo voraz nos empurra, é fruto da ganância do homem e, principalmente, da ignorância coletiva.

Para nós, não basta apenas acordar com a vida digna que já temos . Temos que suar a camisa, rasgar o tênis ( no seu caso) para pagar as contas; mas não bastam as nossas contas. Criamos outras contas a mais para serem pagas, pelo impulso do consumo e da necessidade fútil , e como bem deixou a entender a escritora Martha Medeiros, nesse texto que vc usou, "precisamos" de coisas que não precisamos...
Somos reféns da nossa própria ignorância e da dos outros também.
Mas sempre há tempo para recomeçar. Sempre.
Bjão.

Vivianne disse...

Obrigada por dividir a vida de vcs comigo, aqui no blog!:) Agradeço infinitamente aos leitores fiéis de sempre!