sexta-feira, 11 de março de 2011

Dia de Trabalho

Hoje, trabalhando em meio a vielas e becos dos bairros miseráveis do Recife, quase caí em um esgoto a céu aberto por não conseguir me equilibrar em uma 'ponte' improvisada pelos moradores. Uma senhora me acudiu e estava com uma pequena bebê em seus braços, marcada por manchas vermelhas e cheia de brotoejas (é assim mesmo que se escreve?), que me olhava com um olhar profundo, como se ultrapassasse a minha retina e chegasse ao meu coração como um flecha. Perguntei se a menininha estava doente e a avó disse que não, que era apenas calor.

Eu sabia que não era. Mas tinha mandados a cumprir ali, e a área era perigosa. Peguei um hipoglós e dei àquela pobre mulher, na tentativa de aliviar a minha própria consciência. Segui em frente e encontrei a casa da moradora que eu deveria intimar para uma audiência no Juizado Criminal. Ela não sabia o que era intimação, o que era audiência, tampouco em que consiste um processo. Mas sabia que sua vizinha tinha prestado queixa em virtude de uma discussão entre as duas. Quando entrei na casa para que ela assinasse o mandado, estavam duas crianças perto de um gato, e os três estavam sentados na lama. Havia chovido e a casa era de chão batido. Na hora pensei naquele poema-"O bicho, Meu Deus, era um homem".

Sorri para aquelas pequenas criaturas, agradeci à pobre senhora que não sabia que xingar a vizinha de "amarrada" era crime, pulei na ponte de taipa, dei adeus à avó com sua neta nos braços, e saí dali cheia de sentimentos contraditórios. Já estou nesta profissão há dois anos, mas não consigo me acostumar a ver a Justiça ir nos becos pobres em busca de xingamentos e não vê-la seguindo o mesmo caminho para fazer com que um esgoto seja tratado. Não consigo entrar em uma casa de taipa para cobrar uma dívida de R$63,00 e ver milhões e milhões sonegados, desviados, usurpados sem que ninguém possa intervir, sob alegação de que existe um "devido processo legal" e até que provem o contrário, todos são inocentes. Para os pobres, até que eles provem o contrário, eles já nasceram culpados.

Pensei em como partir para outra profissão durante todo o resto da manhã e não consegui trabalhar direito. Fui na igreja do Pina (o bairro onde eu estava) e lá, inacreditavelmente, havia uma brisa suave, como um refúgio de paz. Silêncio no meio da cidade latejante, flores rosas e brancas no meio da favela cheia de lixo. Senti a presença forte de Deus ali. Fechei os olhos e chorei, como se cobrasse alguma explicação d´Ele, afinal, de quem foi a invenção de criar tudo isso? Não sei, mas não me veio nenhuma explicação. Não ouvi dos céus uma justificativa que me fizesse seguir em frente. Mas olhei para o meu Pai- terreno, Seu Renato :), que me acompanhou hoje- e senti um amor imenso por ele. Mesmo ele tendo me feito para grandes coisas, e que talvez não se orgulhe tanto do que eu me tornei (eu podia ser bem melhor, convenhamos), tenho certeza de que ele me ama.

E tenho mais certeza ainda de que eu fui uma presença de paz para as pessoas com quem conversei nesta manhã. Tranquilizei todas elas em dizer que a "Justiça" não era necessariamente
temerosa e má. Que o Juiz iria fazer a coisa certa e fazer as pazes de quem tinha brigado( pelo menos, é o meu desejo de que seja assim que aconteça). Uma das ' intimadas' daquela manhã sorriu quando lhe expliquei como era uma audiência preliminar,respirou de alívio em não ser presa e me abraçou.

Por um momento, exatamente naquele momento, se meu pai estivesse vendo, sentiria orgulho de mim e teria a certeza de que valeu à pena ter me posto no mundo. E como se Deus tivesse respondido a todas as minhas perguntas, eu parei de chorar, sorri pro meu pai e dei um beijo na cabeça dele, já quase sem cabelos, com a estranha sensação de que por trás de tudo isso há um grande propósito, que vale uma vida inteira de investigação, quem sabe.


2 comentários:

Danielle Patrícia disse...

Cara Viviane,

Mesmo sem conhecê-la, também me orgulhei do seu dia de trabalho. Sabemos bem que a Justiça é apenas um ideal que se busca alcançar e, de toda sorte, acredito que cada um de nós é a maior criação d´Ele...

Danielle Patrícia

Luana Magalle disse...

Gostei do texto...
Parabéns pelo dia e pelo trabalho!
Bjos