sábado, 20 de agosto de 2011

"Nossos Destinos foram traçados na Maternidade"

Dia desses eu estudava na biblioteca quando alguém bateu no vidro da sala de estudo pedindo permissão para entrar. Era um rapaz bem mais jovem do que eu, que queria varrer o chão do lugar. Imediatamente me levantei e fiquei esperando que ele terminasse, enquanto uma horrível sensação me percorria. Perguntei a ele se ele também estudava e ele me respondeu que já tinha terminado o ensino médio.Ele não falou  nada além disso e claro que  não tive coragem de perguntar mais. Estávamos, ambos, envergonhados. Envergonhados pela imensa distância que nos separava, desde que nascemos. Eu nasci e fui desejada, cuidada, dormi em "berço esplêndido", enquanto aquele menino e tantos outros na maioria das vezes não têm sequer uma cama só pra eles. Enquanto eu estava estudando pra ganhar mais, ele trabalhava para sobreviver. Ao mesmo tempo em que eu estudava os direitos "da pessoa humana", ele sabia, concretamente, quais direitos não tinha. Entre eles, o de fazer parte daquele grupo de estudantes de uma Biblioteca Pública. Como seria possível passar o dia ali, estudando? À noite, o lugar fechava. Portanto, só os sortudos podiam usufruir daquele espaço, que talvez devesse atender justamente, os não-sortudos.

Pensei nisso tudo, e me senti tão mal, que não consegui mais estudar. Faltava-me coragem de enxergar o livro quando tudo o que meus olhos viam era aquele menino catando papéis de bombom. Enquanto meu olhar ficava úmido, pedi desculpas a ele, em silêncio, e fui embora. "Desculpa por eu ter nascido em um lugar melhor que o seu, eu não tive culpa." O nosso destino, como dizia o grande poeta Cazuza, foi traçado na maternidade. Não o destino romântico de se encontrar, mas o destino cruel de não se encontrar. Quem sabe, nunca.

Anteontem, fomos assistir a uma apresentação da orquestra da Polícia Militar, na orla da praia de Tambaú, lugar que mais gosto aqui em João Pessoa. Concordo com Nietzsche quando ele disse que "sem música, a vida seria um erro". E naquela ocasião, essa frase era mais que acertada. No meio da apresentação, surgiu um pequeno Coral de vozes infantis, oriundo de um projeto social de músicos no bairro pobre de Mandacarú. Vi aqueles pequenos meninos e lembrei daquele grande menino da Biblioteca. Fiquei chorando com a desculpa da música "Eu quero Paz" que eles cantavam, e meu choro era uma súplica a Deus para que eles pudessem, ao menos, ter um pouco da sorte que eu tive durante toda a minha vida. Pedi a Deus para as pessoas perceberem que o mundo delas está interligado com o mundo de outras, e não desconectado. Pedi para que quem usasse o dinheiro público pensasse que ele poderia mudar o destino de tantos guris daqueles. Chorava de raiva por só ganhar eleição quem tem dinheiro, e não quem vem dali, do berço dos não-sortudos. Não há como se fazer uma reforma política nesse País, meu Deus? Não há como a futilidade e o egoísmo deixarem só um pouquinho de espaço para a gente poder pensar no mundo em que o outro vive?
Eu fazia tantas perguntas que a música já tinha acabado e eu nem notei. Aí, de repente, a banda já tinha começado a tocar "O que é o que é?", de Gonzaguinha, ao mesmo tempo em que dois meninos, na minha frente, se jogavam na areia e riam (gravei os dois, aí embaixo). E parece que Deus me respondia com eles:  

"Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será, mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita."
 


3 comentários:

carol montenegro disse...

muito bom, como sempre ;)

Ana Cecília disse...

Emocionante...

Obrigada, Vivianne!

camila lavor disse...

Minha sensibilidade sempre aflora e a relativização das coisas da vida tb com esses seus textos..
Obrigada
Amo..