sexta-feira, 29 de abril de 2011

Ontem

Quando eu era pequena, passava as manhãs de domingo desvendando os discos do meu pai, enquanto a velha vitrola lá de casa tocava sem parar todas as músicas do álbum "Please, Please me", dos Beatles- trilha sonora preferida para Seu Renato e Nick, o cachorro, tomarem banho no jardim (Para meu pai ele que dava banho no cão, mas diante da cena que me vem à memória, lembro dos pensamentos de Montaigne:“Quando eu estou brincando com meu gato, como eu sei que não é ele que está brincando comigo?").

Naquele tempo, ouvindo aquelas músicas, eu tinha certeza que quando crescesse, eu seria conhecida. Não importava muito como- eu já tinha escrito um livro (e feito as ilustrações!), eu dançava ballet(e odiava), era a única menina do clube a ser campeã invicta do nado borboleta, chorava de mentira e fazia cenas de novela, dramatizava meus castigos, eu entrevistava minha avó perto do pé-de-Caju dizendo que falávamos diretamente da Torre Eiffel. Não seria possível que, diante de tantas "aptidões", eu não fosse me dar bem em alguma. Chego a rir lembrando das minhas dúvidas: Para onde eu iria escolher ser correspondente da Globo? Eu queria a Itália, mas adorava a Ilse Scamparini, não queria tomar o lugar dela.
Eu era feliz. E sabia.

Hoje, do alto dos meus 27 anos, dez a mais do que naquele tempo eu julgava a idade ideal para se fazer tudo, vejo que essas memórias são muito mais que simples recordações infantis, elas me recordam da minha essência. De querer tudo, de preferência ao mesmo tempo. Sempre gostei de ver além, muitas vezes pela imaginação. Fico pensando se eu mostrasse o que já vivi para aquela menina desengonçada e de pernas finas, como ela iria reagir. Talvez ficasse feliz com o futuro, mas receio que iria perguntar: "-só isso?". E eu a rechaçaria: "Você vai ver como é difícil!"

Meus caminhos foram sendo trilhados de uma forma que minhas escolhas, algumas pensadas, outras impulsionadas, a maioria feita para pensar depois, me fizeram chegar a um bom lugar, para felicidade geral da nação: perto da família, com emprego 'estável', bom marido( na verdade ele é ótimo), bicho de estimação, com filhos depois-de-dois-anos-quem-sabe.

Eu sei que parece falta de gratidão com tudo de bom que a vida me proporcionou, e longe de mim não amar tudo que tenho, mas às vezes surge em mim uma sensação de que nasci para algo maior. Leonardo Boff aduz que o ser humano é ser de transcendência, e talvez seja essa a resposta dos meus anseios. De um lado, a minha aspiração de fuga, de outro, não imaginava que iria me sentir feliz com tudo aquilo que eu julgava tão medíocre.

Na verdade, o que queremos é ultrapassar nossa vida limitada, pois "não queremos apenas viver muito, mas viver sempre", como diria o Pe.Waldemir. Não aceitamos apenas o que temos, até porque isso seria o passaporte de uma vida cheia de resignações e arrependimentos, e não é o que buscamos. O que minha ausência precisa é de significados. Acho que a solução é simplesmente amar. Amar tudo, até o que é inútil, como ensinava Lygia Fagundes Telles. Porque quando amamos, levamos esse significado ao que é comum. O ordinário passa a ser extraordinário. E o que era medíocre, passa a ser importante.

Eu concordo com J.Paul Sartre quando ele dizia que estamos condenados à liberdade. Estamos condenados a viver para onde nossas escolhas nos levam. Por isso o mais fácil é ficar prostrado em escolher. Sempre digo que seria mais fácil se Deus tivesse, pelo menos, nos dado um mapa do tesouro (e o tesouro seria conseguir ser o que nascemos pra ser). O desafio de chegar lá seria de nossa responsabilidade, mas pelo menos saberíamos o caminho.

Enquanto Deus não me manda meu mapa verdadeiro, vou testando os meus próprios mapas, desenhados por mim.Ele deve vê-los como aqueles desenhos de crianças,em que o guri sempre é desdentado. Mas nessa imagem, Deus sorri pra mim, tal qual o Pai faz com o filho. E por falar em Pai, depois de amanhã é domingo, e que bom que mesmo que não possamos viver mais na nossa velha casa, que Nick não exista mais, que ele tenha cabelos a menos e eu cabelos a mais, eu e Papai ainda podemos nos ver e escutar "Do you want to know a secret" juntos. E no fim das contas, é dessa troca de amor que podemos transcender. É pelo amor que podemos nos tornar eternos na memória de alguém. O Amor é o verdadeiro conhecimento que devemos almejar, muito mais do que grandiosos feitos e acontecimentos.

Eu respondo minhas dúvidas através desse texto, só de pensar no meu Pai e perceber o quanto o amo. E diria à Vivianne Criança que tudo o que ela almejava- ser conhecida- já foi realizado. Porque ela se tornou amada. E a gente só ama quem a gente conhece. E já que eu falei em Sartre, gostaria de terminar com um trecho do livro sobre Gabriel Marcel, filósofo existencialista também, mas que diverge totalmente do pensamento de Sartre, e nos acalenta os sentidos.

"Enquanto Sartre diz que o olhar do outro nos ameaça, Gabriel Marcel diz que há olhares que nos revelam o outro ,o mundo e a nós próprios (...) É no âmago do amor que brota a esperança de imortalidade. Amar alguém é dizer-lhe: 'Tu não morrerás'."

Um comentário:

Camila Carol disse...

Lindo amiga!!! Me amocionei com seu email.... tantas saudades... tantas lembranças. Estou bem feliz... pelo amor que tenho recebido. Nos encontraremos em breve. Beijo no coração...